Germana (1909-2006)
Não se lembra ao certo da primeira vez que entrou no Parque Mayer. Lembra-se que foi numa altura em que não era perigoso as crianças andarem ali sozinhas. Um tempo em que havia muita luz, muita vida. Germana arrisca uma idade. Sim, foi com os seus 8 anos. Com essa idade, Germana apanhava a sua mãe distraída a estender roupa, ou a falar com uma vizinha e lá ia ela. Sozinha. Em passo acelerado, com medo de ser descoberta, Germana fugia até ao Parque para assistir aos ensaios e às revistas que estavam em cena. O ritual repetia-se. Germana esticava-se até à boca da bilheteira e pedia ao senhor Ferrugem, “que infelizmente já morreu”, se não lhe arranjava o bilhetinho... Quem é que podia recusar um pedido destes? Terminada a peça, Germana subia a Rua da Glória, sempre a rezar para que a mãe não a tivesse descoberto. Chegava a casa e a desculpa era sempre a mesma: “Fui brincar com os primos”. Umas vezes a desculpa pegava, outras nem por isso e quem se ressentia era o seu rabo que ficava a arder de tanta chinelada... mas, nem isso demovia a Germana que, no dia seguinte, lá estava à espera do momento oportuno para escapar de casa.
Se a memória não me falha, a primeira revista que vi no Parque Mayer foi “O Correio dos Amantes”. A partir da primeira, o número exacto de revistas a que já assistiu perde-se na sua memória.
Tudo aconteceu muito de repente. Um dia, estava nos bastidores do Teatro e a costureira da primeira figura faltou. No meio da confusão, a Germana arriscou e perguntou ao responsável se podia substituir a costureira. O responsável olhou para a miúda de 15 anos, tímida, franzina e desconfiou. A Germana assegurou que conhecia todos os truques da profissão, não tivesse ela farta de ver fazer. O responsável deu-lhe um avental para vestir e indicou-lhe o camarim da actriz principal. Germana tinha 15 anos e o seu destino ficou para sempre traçado. A sua vida seria dedicada a vestir, a despir e a fazer mudanças às grandes figuras da Revista.
Nessa noite, Germana não subiu a Rua da Glória em passo acelerado. Foi devagar, bem devagarinho, para poder pensar na melhor forma de dizer à sua mãe que queria ser costureira do Parque Mayer... Quando chegou a casa, o chinelo já estava pronto. A Germana encheu-se de coragem e antes que a mãe tivesse tempo de fazer ou dizer alguma coisa, confessou a sua paixão pelo Teatro. A mãe baixou o chinelo e fitou-a nos olhos. Um segundo depois, disse-lhe que se o Teatro estava no seu destino, de nada valiam as suas proibições e chineladas. Germana nem queria acreditar naquilo que estava a ouvir.A partir desse momento, Germana passou a ir todos os dias para o Parque Mayer. Sem inventar desculpas, sem se preocupar com as horas. Saía de casa com um vestido “janota”, feito pela mãe, com um saquinho com a merenda e outro com o seu instrumento de trabalho. Um avental de costureira comprido, com um grande laçarote. Antes de explicar melhor o seu avental, Germana afirma, com orgulho, que naquele tempo, “as costureiras eram muito chiques”... O seu avental era aos quadradinhos, tinha um suporte junto ao peito, para colocar os alfinetes de dama e um conjunto de agulhas com linhas de diferentes cores. No bolso do avental tinha fechos, botões e tudo o que pudesse vir a precisar em caso de alguma aflição. Todas as artistas que vestia “iam direitas para a cena. Não é como hoje em que muitas vezes entram de meias rasgadas ou com o botão desapertado. Dá um ar de miséria. O que é que o público fica a pensar...”
(...)os nomes são muitos e a memória da Germana não falha. Vestiu a Maria dos Santos “que Deus tenha a sua alminha”, o seu filho, o Mário Santos, o Álvaro Pereira, a Beatriz Costa... A sua cara transforma-se. Germana baixa os olhos, junta as mãos e confessa que gostava de todos os actores que vestiu, mas a Beatriz... Bem, a Beatriz Costa era especial. É com orgulho que diz que a Beatriz Costa só a queria a ela!
“Por exemplo, se as Companhias iam para o Porto, ela insistia que eu fosse e que ficasse no Grande Hotel. Onde quer que a Beatriz Costa fosse, lá estava eu, a sua dama de companhia... Ela era muito minha amiga, dizia que eu era a sua segunda mãe, veja lá! Que Deus a tenha”.
A “Tia Germaninha”, como é conhecida no Teatro não gosta de contar muitas histórias sobre os actores. É que a Germana nunca foi pessoa de estar à porta do camarim a ouvir a conversa dos outros.
Mal pressentia um “ambiente estranho no ar” retirava-se e só voltava “quando as coisas se acalmavam”. Talvez por isso todos a estimassem.
Fez muitos amigos no Teatro. Para Germana é uma grande tristeza ver que a maior parte deles já faleceu. “Que Deus os tenha a todos!”. Germana, resistente, confessa que pelo menos eles não estão cá para ver o “estado de desolação em que está o Parque Mayer”.
Todas as vezes que entra no Parque Mayer, Germana assegura que o seu coração fica “muito apertado e triste”. Ela até já pediu a uma senhora que trabalha na Câmara para não deitarem o Parque abaixo, mas o que a Germana queria mesmo, “era conhecer o Dr. João Soares, para lhe pedir para salvar o Teatro. Queria ver o que é que ele dizia aqui à Germaninha!”
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